deficiencia fisica

deficiencia fisica e suas dificuladades

 

Resumo: Recentemente, os termos diversidade e inclusão invadiram o cenário político e social com a finalidade de promover condições e oportunidades iguais às pessoas deficientes. Nesta ótica, os acessos à educação, ao trabalho, à cidadania, à atividade física, esporte e lazer deveriam ocorrer em um ambiente social o menos restritivo possível. O presente trabalho pretende analisar as barreiras ambientais e sociais encontradas por pessoas deficientes na prática de atividade física e esporte na cidade de Brasília; e também problematizar os movimentos discursivos presentes nas falas dos deficientes no que tange aos entraves e dilemas encontrados para a prática regular da atividade física e esporte. Para a configuração deste estudo, optei por uma análise à luz dos princípios que norteiam a etnografia. Utilizei os seguintes instrumentos para a coleta: observação participante; questionário aberto aplicado aos deficientes; registro através de áudio de alguns depoimentos de sujeitos deficientes; e diário de campo. Barreiras ambientais, preconceito social e baixo poder aquisitivo são apenas alguns dos exemplos que podem ser citados com o intuito de evocar as falas contidas nos discursos de homens e mulheres que praticam (ou não) atividade física e esporte na cidade de Brasília.

 

  1. Introdução

 

Para homens, mulheres e crianças sem problemas de locomoção, barreiras ambientais (arquitetônicas) passam despercebidas. Ausência de rampas em edifícios (públicos e privados) e em calçadas; falta de transportes coletivos adaptados com elevadores para cadeirantes, amputados e sujeitos com as mais distintas dificuldades de locomoção (paralíticos cerebrais, poliomielíticos, idosos e outros); ou ainda, banheiros com espaços não adaptados não se constituem como obstáculos diários para pessoas ditas normais.

A arquitetura da maioria das construções não é concebida para atender às necessidades das pessoas com deficiência. Essa não-concepção de acessibilidade não só dificulta a locomoção desse segmento da população, mas também propiciam o segregamento e discriminação de deficientes por negar-lhes a possibilidade de deles usufruir.

Milhões de brasileiros e brasileiras não saem de casa porque não podem locomover-se sem o auxílio de algum parente ou amigo. Segundo estimativa do Órgão das Nações Unidas (ONU), para os países em estágio de desenvolvimento (neste estudo, o Brasil), 10% da população (cerca de 15 milhões de pessoas) tem algum tipo de deficiência física.

Conforme estudos da Organização Latino-Americana de Saúde, o índice de deficiência no Brasil é maior do que o de outros países de terceiro mundo. As causas de deficiência são, de um lado, epidemias, subnutrição, falta de saneamento básico, prevenção e, de outro, problemas gerados pela violência urbana: assaltos com arma branca e arma de fogo, acidentes de trânsito.

Com o intuito de dirimir os mais variados tipos de dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência, que vão desde preconceito e discriminação por parte da própria família, até barreiras ambientais (arquitetônicas) no contexto social, o governo federal conta com três importantes órgãos, todos sediados em Brasília: no Ministério da Educação, a Coordenação de Educação Especial (COEE); no Ministério da Ação Social, a Coordenação para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE); e na Presidência da República, a Secretaria de Desportos.

Mais de trezentos prédios públicos do Distrito Federal (doravante DF) não atendem as condições mínimas de acesso para pessoas com deficiência. Nos edifícios privados a situação não é diferente. Não há rampas e banheiros adaptados para esse segmento da população.

De acordo com a Lei Distrital n° 258, de maio de 1992, num prazo de cinco anos, todos os prédios públicos e privados da capital federal deveriam estar adaptados para facilitar a circulação de pessoas com deficiências. Enquanto isso não ocorre, os cerca de trezentos mil deficientes no DF têm de enfrentar diariamente obstáculos para realizar tarefas simples, tais como, atravessar a rua ou entrar em uma agência bancária.

Quanto ao cenário da prática de atividade física e esporte para pessoas com deficiência no DF, atualmente, há instituições em Brasília que estão contribuindo significativamente para o desenvolvimento esportivo e de lazer desses cidadãos. Dentre elas se destacam:

·         Comitê Paraolímpico do Brasil (CPB), criado em 1995. Tem como veículo de comunicação, a Revista Brasil Paraolímpico, cujo objetivo é informar todos os acontecimentos do movimento paraolímpico: conquistas dos atletas, patrocínios, informações do meio sócio-político, dentre outros;

·         Programa de Reeducação e Orientação às Pessoas com necessidades Especiais (PROPNE), da Secretaria de Estado de Educação em parceria com a Secretaria de Esporte e Lazer;

·         Centro de Treinamento de Educação Física Especial (CETEFE) localizado em na Asa sul.

 

Para além de contribuírem na inserção de pessoas com deficiência em atividades físicas, de esporte e de lazer, essas instituições, reconhecidamente, têm também um papel relevante na inclusão social desse segmento da população na sociedade.

Embora facilitem não somente a divulgação do esporte, mas também o acesso de homens e mulheres com deficiência às atividades físicas e ao lazer, essas instituições governamentais procuram ainda sensibilizar a população e a sociedade em geral para os obstáculos ambientais e sociais sofridas pelos deficientes em suas idas e vindas diárias.

 

  1. Metodologia

 

Para a configuração deste estudo, optei por uma análise à luz dos princípios que norteiam a etnografia. Este procedimento de pesquisa, contrariamente às abordagens quantitativas, não exige a definição a priori de um modelo teórico acabado, porém não elimina a fundamentação teórica. Isto implica dizer que a composição dos pressupostos teóricos viabiliza a fusão da vertente empírica com a arquitetura teórica.

Participaram desta pesquisa 25 pessoas com deficiência, de ambos os sexos, residentes no Distrito Federal, com idades entre 27 e 42 anos. Os depoimentos foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas. As respostas foram gravadas em áudio e ulteriormente transcritas e analisadas. Durante a realização das entrevistas com os deficientes foram enfrentadas algumas dificuldades, pois como não havia um local exclusivo para este fim, elas foram realizadas nas casas dos próprios entrevistados, nos seus locais de trabalho, ou ainda, num centro de treinamento de educação física especial.

Apesar de as questões focalizarem as barreiras ambientais e sociais encontradas por pessoas deficientes na prática de atividade física e esporte na cidade de Brasília, outros tópicos como deficiência, discriminação e inclusão social também foram enfocadas durante a entrevista com todos os sujeitos.

Para configurar este estudo, utilizei os seguintes instrumentos para a coleta:

·         Observação Participante;

·         Questionário Aberto;

·         Registro através de áudio de alguns depoimentos de sujeitos deficientes;

·         Diário de Notas de Campo.

 

O registro realizado por meio de áudio possibilitou rever detalhes relevantes dos discursos de homens e mulheres com deficiência, sobretudo aqueles que se relacionaram com as dificuldades diárias enfrentadas por esses sujeitos em suas locomoções não só ao trabalho e à prática de atividade física e esporte, mas também ao entretenimento em geral.

Os recortes utilizados para análise, em sua maioria, constituem-se do material que fazia parte do cotidiano da prática de atividade física e esporte dos sujeitos e que se tornou disponível para a pesquisadora.

 

  1. Resultados e Discussão

 

Neste estudo as discussões serão norteadas pelos conceitos de interdiscurso e formações discursivas, haja vista que uma boa parcela dos discursos da e sobre barreiras ambientais e sociais encontradas por pessoas deficientes na prática de atividade física e esporte sofre reconfigurações constantes para adaptar-se ao contexto social. O debate permitirá verificar que atravessados e afetados pelos discursos é que as pessoas com deficiência constroem suas imagens de barreiras ambientais e sociais, preconceito e cidadania.

Antes de focalizar os depoimentos de homens e mulheres com deficiência é necessário que façamos uma incursão nos conceitos de formações discursivas e interdiscurso que ancorarão a análise destes discursos.

As formações discursivas podem ser conceituadas como um conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de formação. A formação discursiva se define pela sua relação com a formação ideológica, ou seja, os textos que fazem parte de uma formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica. A formação discursiva determina o que pode e deve ser dito a partir de um lugar social historicamente determinado. Um mesmo texto pode aparecer em formações discursivas diferentes, acarretando, com isso, variações de sentido. (BRANDÃO, 1999).

Para a análise do discurso não existe um sentido a priori, porém um sentido que é construído, produzido no processo da interlocução. Por isso deve ser referido às condições de produção (contexto histórico-social, interlocutores, dentre outros) do discurso. Para Pêcheux (1990), o sentido de uma palavra muda de acordo com a formação discursiva a que pertence.

No interdiscurso há uma relação de um discurso com outros discursos. Para Maingueneau (1989) a interdiscursividade tem um lugar privilegiado no estudo do discurso: ao tomar o interdiscurso como objeto, procura-se apreender não uma formação discursiva, mas a interação entre diferentes formações discursivas. Nesta ótica, relevar que a interdiscursividade é constitutiva de todo discurso é dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos. Em uma palavra, todo discurso está tecido pelo discurso do outro.

Feita essa breve incursão pelos conceitos de interdiscurso e formações discursivas, passemos, então, aos depoimentos de homens e mulheres com deficiência para que possamos mais bem compreender seus movimentos discursivos.

Barreiras ambientais, preconceito social e baixo poder aquisitivo são apenas alguns dos exemplos que podem ser citados com o intuito de evocar as falas contidas nos discursos de homens e mulheres que praticam (ou não) atividade física e esporte na cidade de Brasília.

A maioria dos entrevistados, 58% do sexo masculino e 42% do sexo feminino, possuem subempregos e a renda salarial é de dois a cinco salários.

No que respeita à escolaridade, 36% dos deficientes não finalizaram o ensino fundamental, 26% deles não têm ensino médio completo e apenas 4% concluíram o nível superior.

Indagados sobre o acesso a algum tipo de atividade física ou esporte, a maioria dos entrevistados respondeu que não pratica regularmente atividade física, embora tenha interesse em retomar ou iniciar a prática esportiva.

Dentre os itens assinalados pelas pessoas com deficiência que se configuram como barreiras ambientais e sociais, no DF, destacam-se: locomoção (26%), desinteresse por parte do governo (16%) falta de dinheiro (16%), falta de oportunidade (13%), preconceito da sociedade (13%), preconceito de si mesmo (13%) e pouca divulgação de informações (3%).

De fato, a locomoção não apenas na cidade de Brasília, mas em todo o DF é considerado um grande empecilho para os sujeitos entrevistados. Sozinho é praticamente impossível circular sem esbarrar numa barreira arquitetônica.

Segundo depoimento de Peter[1], ele não consegue se locomover sem a ajuda de cidadãos ditos normais: “a sorte é que a gente sempre encontra alguém pra ajudar a subir os degraus de uma escada, e também para subir e descer dos ônibus. Sozinho não dá pra fazer muita coisa, pois faltam rampas e esportes adaptados pra deficientes aqui em Brasília”.

Diferentemente de outras capitais, os ônibus na cidade de Brasília ainda não são adaptados para pessoas com deficiência. Essa não-adaptação do transporte urbano interfere diretamente nas idas e vindas dos deficientes de suas casas, do trabalho e do lazer, pois a maioria depende desse meio de transporte para sua locomoção.

Embora haja a Lei nº 258, de maio de 1992, a qual determina a inclusão em edifícios e logradouros de uso público de medidas para assegurar o acesso, naquelas áreas, de pessoas com deficiência, pouca coisa mudou na realidade concreta desses homens e mulheres no que diz respeito à diminuição de barreiras ambientais e sociais.

Cabe-me salientar que não estou questionando o que prevê essa Lei e, sim, a sua não aplicação após quatorze anos de sua criação. Os entraves provocados pelas barreiras ambientais (arquitetônicas) dificultam reconhecidamente a acessibilidade das pessoas com deficiência em vários segmentos da sociedade.

Vejamos outro recorte de um depoimento concedido por George: “O deficiente físico paga impostos como qualquer outra pessoa, então ele tem direito de ir e vir de sua casa, de seu trabalho e de seu lazer como qualquer pessoa”.

George não chama atenção apenas para o fato de ter sua locomoção diária prejudicada, mas sobretudo para a questão da igualdade entre as pessoas, que é um direito garantido pela Constituição Federal (1988). Neste sentido, os direitos devem ser usufruídos por todos os sujeitos, independentemente de ele ser deficiente (ou não).

Conforme consta no artigo 273 do capítulo IX da Lei Orgânica do Distrito Federal, “É dever da família, da sociedade e do Poder Público assegurar as pessoas portadoras de deficiência a plena inserção na vida econômica e social e o total desenvolvimento de suas potencialidades”.

É relevante enfatizar que a inclusão social das pessoas com deficiência não diz respeito somente ao trabalho, à saúde, à educação e às assistências social e jurídica, mas principalmente ao lazer e à cultura. A diminuição de barreiras ambientais e sociais é essencial ao exercício da cidadania, porque representa o acesso adequado a todo e qualquer tipo de logradouro e edifícios de uso público ou não.

  1. Conclusão

 

Existem diversos modos de significar a prática de atividade física e esporte para pessoas com deficiência haja vista que existem diferentes gestos de interpretação na sociedade. O que significa dizer que deficiência, atividade física e esporte são afetados por multifacetados sentidos de acordo com a ordem do discurso em que eles são significados.

Atravessados e afetados pelos discursos é que homens e mulheres com deficiência constroem seus discursos sobre as principais barreiras ambientais enfrentadas na prática esportiva e no lazer. Suas dificuldades e lutas permanecem ecoando em seus discursos, ainda que ditos em silêncio.

Por fim, gostaria de evocar que todas as pessoas são diferentes. Limites e possibilidades de superação também são diferentes. Não há como homogeneizar o sujeito sem correr o risco de tirar-lhe sua identidade e usurpar-lhe o direito de exercer plenamente sua cidadania.

 

  1. Referências Bibliográficas

 

BRANDÃO, H.H.N. Introdução à análise do discurso. 2ª reimpressão da 7ª edição, Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1999. (Coleção Pesquisas).

BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília – Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

_______. Câmara Legislativa do Distrito Federal. Lei nº 258 de 05 de maio de 1992. Brasília: Diário Oficial do Distrito Federal. 06 de maio de 1992.

_______. Lei Orgânica do Distrito Federal. 3ª edição consolidada. Brasília: Câmara Distrital. 20 de outubro de 2005.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes/Editora da Unicamp, 1989.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. F. Gadet e T. Tak (orgs.), Campinas: Editora da Unicamp, 1990 (Título Original: Analyse Automatique du Discours).

_______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Editora da Unicamp, 1997.



[1] Os nomes dos sujeitos deste estudo foram modificados por questões éticas.